A violência se evidencia como um mecanismo poderoso para a desumanização de indivíduos inseridos dentro de um contexto de instabilidade política em qualquer nação. Seus efeitos extrapolam qualquer medida política ou ação social no intuito de inibi-la, e sua herança é longínqua, haja vista que estabelece um vínculo com o indivíduo ao ponto de se manter viva em sua memória. Tal vínculo gera como consequência uma perpetuação de suas ações no imaginário individual e coletivo.
Fazendo uma retrospectiva histórica nas práticas de violências cometidas pelos países europeus sobre suas colônias na América, espanhola ou portuguesa, verificamos semelhanças que permeiam o seio da sociedade nos dias de hoje. Atos desumanos contra comunidades indígenas ou afrodescendentes, ainda são vistos em qualquer parte do Brasil, Colômbia, Venezuela, Equador, etc. A violência não se limita a esses dois grupos étnicos, ela se estende a outras minorias, além de segmentos da sociedade considerados pelo sistema capitalista como descartáveis.
A partir do século XVI, centenas de nações indígenas espalhadas pela América tiveram suas culturas destruídas e suas terras invadidas pelos colonizadores e missionários a serviço de algumas nações europeias e da hierarquia religiosa da época. Nesse cenário, deslumbrante e estarrecedor, não é possível esquecer as populações africanas compulsoriamente desarraigadas e, logo após, escravizadas pelos mercenários portugueses e os senhores dos engenhos do novo continente. As formas de violência praticadas no período colonial se reproduziram ao longo dos séculos tendo à frente novos agentes com novos objetivos.
Mesmo vivendo sob a égide da violência, resultado dessas ações depredatórias, as populações menos favorecidas de países como Brasil e Colômbia alimentam anseios por mudanças e incitam movimentos de contestação. A busca pela justiça, cidadania e pela paz inclui o respeito às minorias, o fim do trabalho escravo e da exploração das crianças, o respeito às opções de credo, o direito a educação e saúde, a preservação do meio ambiente e das florestas não apenas para constar em catálogos que mostram ambientes exóticos para turistas, mas para garantir o direito sobre a terra àquelas comunidades que tiram seus sustentos dessas áreas.
Quando destaco o caráter histórico da violência em países como a Colômbia, não estou defendendo a ideia de que o que é histórico seja imutável, devendo existir para sempre. Este trabalho é um exemplo de que a violência não surgiu por um acaso e que o nosso futuro pode ser diferente, apenas depende de cada um de nós.
Conhecer um pouco da História da Colômbia, suas relações políticas com outros países, os problemas sociais causados pela má distribuição de renda, a exploração da mão-de-obra de camponeses e de grupos indígenas é um exercício valioso para se entender o quão semelhante são os problemas enfrentados pelas minorias nos países latino-americanos.
Minha primeira viagem à Colômbia foi para visitar a aldeia de Macondo, levado pelo colombiano Gabriel Garcia Márquez através do romance Cem anos de solidão. À primeira vista, não estranhei, haja vista algumas semelhanças encontradas entre a cidade fictícia e algumas existentes no sertão do Nordeste brasileiro, seja na relação de poder e domínio por parte de famílias como a Buendía ou nas práticas rotineiras de violência encontradas ao longo do texto.
A obra As raízes da violência e os caminhos para a paz me proporcionou uma nova viagem à Colômbia. Desta vez, não fui embalado por um romance, uma ficção, uma criação de personagens e fatos. Esta obra se constitui numa retrospectiva histórica com o olhar sociológico sobre uma Colômbia real, com dados estatísticos extraídos de ricas fontes documentais. O texto transita entre passado e presente com maestria e provoca no leitor uma necessidade de refletir sobre questões que envolvem violência, justiça e paz, tripé presente nas análises presentes em cada capítulo.
Estamos diante de um trabalho que não pretende ser uma história da violência na Colômbia, mas com certeza retrata com muita propriedade o aguçamento dela no século XX. Quando discute em seu primeiro capítulo a relação homem-natureza, com o tema Antropocentrismo e violência, abre caminho para percebermos os desafios enfrentados por àqueles que buscam uma igualdade de condições de vida a partir do que a natureza lhes pode oferecer. Romper com o discurso ambientalista letal passou a ser meta prioritária de setores da sociedade comprometidos com projetos de vida alternativos e viáveis para garantir a preservação dos mares, rios, fauna e flora.
O texto Como se constrói a paz? Convida ao leitor para uma discussão em torno dos tipos de violência a partir de autores como o sociólogo Joahan Galtung. Nele se encontra a ligação entre as questões ecológicas e o histórico da violência tratadas no capítulo anterior. Apontando para os tipos de violência – direta, cultural e estrutural – o autor faz um percurso teórico facilitando ao leitor a compreensão sobre os significados da violência dentro de uma sociedade. Faz uma escolha coerente quando provoca um diálogo interdisciplinar entre as terminologias guerra e a paz, tomando como referencia Einstein e Freud e encerra sua abordagem de forma singular, pedindo “permissão” à ciência para apontar como chave suprema para se alcançar a paz, as regras áureas, contidas nos ensinamentos religiosos.
O artigo Sobre o desenvolvimento do conflito e a possibilidade de restaurar o justo nos leva revisitar as diversas formas ou significações da justiça e a experiência singular da Escola de Reconciliação e Perdão – ESPERE – fundamentada na justiça restaurativa. Sem dúvida, uma forma original e mais humanista no tratamento do conflito e a violência, transcendendo a justiça penal que tem como âncora central a punição. A justiça restaurativa procura recuperar tanto para a vítima como para o agressor a sua condição humana. Perspectiva que nos leva ao pensamento de John Rawls para quem a justiça não é uma virtude no sentido aristotélico, nem um direito segundo o pensamento de Rousseau, mas o princípio fundador de uma sociedade bem organizada.
As práticas de violência discutidas na obra não se limitam apenas a agressões contra a natureza, que por si só são graves. Quando se depara com o texto Violência e reorganização territorial na Colômbia, percebe-se a gravidade do problema. Em todo o século XX, adentrando o século XXI, é nítida a instabilidade nas relações políticas e na sociedade em geral. O histórico da violência remonta às lutas dos camponeses e índios no inicio do século XX contra a exploração e as más condições de trabalho nas lavouras de café. A repressão do Estado e a reação dos oprimidos resultaram num conflito armado que perpassa tudo o século XX até nossos dias.
Os conflitos internos e a interferência costumeira dos países imperialistas acentuam a tônica da situação em que vive a Colômbia. A narrativa é rica em detalhes e fontes que proporcionam uma compreensão de como se estruturava o Estado colombiano e a divisão do poder entre os segmentos da sociedade no século XX. Ademais apresenta uma expressiva mostra do quadro econômico do país demonstrando o fosso existente entre os diversos segmentos sociais, não olvidando, por conseguinte de mencionar a inserção do narcotráfico como fator propulsor da violência a partir dos anos de 1970.
Confesso que fiquei surpreso com o capítulo quarto. Uma escolha acertada, Procurando a paz resume toda a problemática proposta na obra. Aos olhos de uma criança se percorre uma realidade vivida em milhares de comunidades espalhadas por toda a América Latina. Não se trata de pessimismo, no tocante as soluções para a violência, seja ela cultural ou estrutural, mas somente um conto pode nos remeter a fórmulas simples de se atingir a paz mundial. O texto nos dá uma receita caseira que pode ser multiplicada a partir de ações e não apenas de palavras soltas ao vento: Uma xícara de solidariedade; Duas colheres de busca em si mesmo e nos outros; Três gramas de amor; Uma caixa grande de justiça; e muita fé.
Iniciei minha viagem à Colômbia em companhia de uma ficção, tendo à frente Gabriel Garcia Márquez, encerrarei na bela companhia de Laura Patrícia, que com simplicidade e maestria me cativou. Sem a pretensão de transformar seu conto num clássico, já o fez, pelo menos na mensagem e na imaginação.
Convido-os também a conhecer um pouco da história da Colômbia a partir da reflexão sobre violência, paz, guerra, narcotráfico, desigualdade social, bem como outros temas abordados ao longo da obra.